O impacto da pandemia nas brincadeiras infantis

Quando estão brincando, as crianças podem inventar um mundo inteiro com sua imaginação. A diversão pode acontecer de inúmeras maneiras, e um dos elementos mais importantes dessa dinâmica é o espaço em que ela ocorre. A escola, o parque ou a rua podem modificar e inspirar a forma como uma brincadeira se desenrola, por isso, mudanças na rotina das crianças podem afetar o modo como elas brincam.

O isolamento social decorrente da pandemia de Covid-19 ocasionou grandes mudanças no dia-a-dia da população, limitando espaços e o contato entre as pessoas. Diante deste cenário, pesquisadores da EEFE-USP sob a orientação da Profa. Dra. Soraia Chung Saura, em parceria com outras universidades, conversaram com diversas famílias para descobrir como o momento do brincar livre e espontâneo estava sendo praticado nessa nova realidade. 

 

Pesquisadores conversaram com diversas famílias para descobrir como o momento do brincar livre e espontâneo estava sendo praticado durante o isolamento social - Foto: Marcos Santos/USP Imagens  

Por meio de relatos dos responsáveis, o estudo concluiu que, mesmo com acesso limitado a objetos e lugares, o fenômeno do brincar livre e espontâneo continuou a ser vivenciado, sendo que os diferentes cômodos da casa geraram diferentes provocações.

Coleta de dados remota

Durante o brincar livre e espontâneo, as crianças praticam sua autonomia e criatividade, inventando histórias, estipulando regras, em suma, definindo como aquele momento deve ser. No entanto, dentro de casa, as possibilidades parecem ser mais limitadas quando comparadas ao mundo exterior. 

Com o início do isolamento social em 2020, o grupo de pesquisa que já investigava o brincar livre e espontâneo decidiu analisar como o fenômeno seria vivenciado diante de uma situação tão excepcional como foi a pandemia. 

Para reunir os dados, os pesquisadores conversaram com 55 famílias dos mais diversos tipos, residentes em grandes centros urbanos. Além do Brasil, o estudo contou com a participação de famílias da África do Sul, Alemanha, Argentina,  Bélgica,  Estados  Unidos,  Índia,  Inglaterra,  Itália,  Malawi,  Moçambique, Peru e Suíça. 

O grupo de pesquisa analisou como o brincar livre e espontâneo seria vivenciado numa situação tão excepcional como foi a pandemia - Foto: Guilherme Viana

Como os encontros presenciais estavam suspensos, as conversas aconteceram por videochamada. Foram feitas duas entrevistas com as famílias, a primeira ainda no início do isolamento, em março de 2020, e a segunda ao fim da pesquisa, em junho de 2020. 

Adaptando a forma de brincar

Uma grande mudança ocasionada pelo isolamento foi a forma como as famílias se relacionavam. A rotina anterior de trabalho e da escola limitava a convivência entre os responsáveis e as crianças, o que mudou drasticamente com o início da pandemia. As famílias passaram a conviver todo o tempo juntas, e em casa. 

Essa nova dinâmica permitiu que as crianças vivessem os espaços das residências de maneira muito completa, apontou o estudo. Por meio dos relatos obtidos nas entrevistas, pode-se constatar as relações existentes entre as brincadeiras feitas e os espaços onde ocorriam. 

A sala funcionava como um ambiente coletivo, usada para realizar apresentações artísticas e jogar jogos de tabuleiro. A cozinha revelou-se um laboratório, onde era possível experimentar diversas sensações ao manusear ingredientes. No quintal, na garagem, no parque ou mesmo na rua, os elementos da natureza eram explorados, bem como os vínculos com os animais de estimação que se tornaram uma importante fonte de afeto para as famílias.

No quintal, que podia ser a garagem, o parque ou mesmo a rua, os elementos da natureza eram explorados, bem como o afeto com os animais de estimação - Foto: Giulia Rodrigues

Os objetos também desempenharam papéis importantes. Nas camas e sofás eram realizados saltos e piruetas, já as mesas e armários podiam ser usados para escalar e se pendurar. Contudo, além de despertar a vontade de praticar desafios corporais, esses mesmos cenários traziam a sensação de aconchego, de acordo com o estudo. 

Uma brincadeira que apareceu de forma constante nos relatos dos pais era a de montar cabaninhas e casinhas. As crianças construíam uma espécie de “ninho” com panos e papelões, ou se enfiavam debaixo da mesa, dentro do armário, como se estivessem à procura de um abrigo. Nesses momentos solitários, os pequenos vivenciavam uma forma de brincar íntima, em que podiam criar seu próprio mundo. 

Nos momentos solitários, os pequenos vivenciavam uma forma de brincar íntima, em que podiam criar seu próprio mundo - Foto: Giulia Rodrigues

Diálogo com as famílias

No decorrer dos meses, as famílias entrevistadas enviaram imagens mostrando os momentos em que o brincar livre e espontâneo ocorria. Foi a forma encontrada, junto às entrevistas, de contornar a impossibilidade de implementar pesquisas de campo.

As perguntas realizadas, dez no total, pediam que os entrevistados descrevessem o local em que residiam, como eram os cômodos, os objetos e, sobretudo, como as brincadeiras dos pequenos aconteciam nesses espaços. Segundo os pesquisadores, as entrevistas permitiram estabelecer uma relação de cumplicidade com as famílias. 

“Perguntamos  sobre  os  tempos,  ritmos  e  rotinas  das  crianças,  sobre  as  brincadeiras  mais  frequentes  do  período, e sobre o brincar com os diferentes integrantes da família. Do  mesmo  modo,  foram  realizadas  indagações  sobre as atividades corporais e expressivas das crianças”, explicam os autores do estudo.

No decorrer dos meses, as famílias entrevistadas enviaram imagens mostrando os momentos em que o brincar livre e espontâneo ocorriam - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Na segunda entrevista, três meses após a primeira, alguns responsáveis disseram notar o aumento dos momentos de brincadeira, enquanto outros relataram o aparecimento do desânimo. O uso de telas e a falta de contato social com outras pessoas também foram temas recorrentes.

Ainda assim, os relatos mostraram que as entrevistas puderam, de alguma forma, beneficiar as famílias. A partir das perguntas, os responsáveis passaram a observar mais atentamente as crianças e permitir que pudessem desenvolver melhor os momentos de brincadeira, com mais liberdade e tempo. 

“É sempre entusiasmante, tanto para pais quanto para pesquisadores, dialogar sobre as ações infantis. Por meio do estudo, foi possível observar o brincar como um fenômeno constante, presente mesmo em períodos desafiadores como o isolamento, e capaz de agir como um mecanismo regulador de saúde e de interação com o mundo”, pontuou o grupo que realizou a pesquisa.

O estudo foi realizado por Renata Dias de Carvalho Meirelles, Sandra Eckschmidt, Elisa Hornett, Gabriel Limaverde, Lia Mattos, Reinaldo Nascimento e Soraia Chung Saura. Sob o título “A cidade que virou casa: considerações sobre o brincar livre e espontâneo durante o período de isolamento social de 2020”, o artigo foi publicado na revista Movimento e pode ser acessado completo por meio do link: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/117179/87267

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