Pesquisadoras propõem intervenções para promover a igualdade na Educação Física.
A desigualdade de gênero ainda é uma questão persistente em diversas áreas da sociedade e afeta diretamente o acesso e as oportunidades de homens e mulheres, reforçando estereótipos e discriminações. No contexto educacional, essa desigualdade se manifesta em várias dimensões, como na distribuição de tarefas, expectativas de desempenho e nas oportunidades de liderança e participação.
A reflexão sobre igualdade de gênero pode transformar a maneira como os jovens veem e vivenciam o esporte. Foto: Marcos Santos/USP Imagens.
Duas dissertações de mestrado recentes, realizadas por Anita Franco Vilardaga e Gabriela Canuto dos Reis, ambas sob orientação do Prof. Dr. Sérgio Roberto Silveira, apontam para a importância de incluir a temática de gênero nos processos de formação docente e na prática escolar e realizam propostas de intervenção para lidar com o tema e promover equidade de gênero.
Os estudos chamam atenção para a necessidade de integrar discussões sobre o assunto nas práticas pedagógicas de áreas esportivas, nas quais os estereótipos de gênero ainda se perpetuam, limitando o desenvolvimento e a participação de meninas e mulheres na Educação Física e no esporte como um todo.
Estudos chamam a atenção para a necessidade de integrar discussões sobre o assunto nas práticas pedagógicas de áreas esportivas. Foto: Lívia Borges, tirada durante a Colônia de Férias da EEFUSP Jr.
Da universidade para a escola
A dissertação de Anita Franco Vilardaga investigou o impacto de um programa de intervenções sobre gênero voltado à formação inicial de futuros professores de Educação Física. De acordo com a pesquisadora, ainda há muitas dificuldades em abordar temas como questões de gênero e sexualidade no contexto escolar, isso porque a temática vem cercada de preconceitos e desinformação, além de ser pouco falada durante a formação acadêmica.
O programa de intervenções utilizado na pesquisa, intitulado “A questão de gênero na formação de professores para a educação básica: um olhar transdisciplinar”, reuniu conhecimentos de diferentes áreas, envolvendo três cursos de licenciatura. Ele buscou refletir e propor ações sobre gênero na educação. O projeto foi desenvolvido pela pesquisadora junto com docentes de três unidades da USP, o Prof. Dr. Sergio Roberto Silveira (EEFE-USP), a Prof.ª Dr.ª Karina Soledad Maldonado Molina (FE-USP), e a Prof.ª Dr.ª Barbara Corominas Valerio (IME-USP), para um edital do CAEG, onde foi aprovado e fomentado pela Pró-Reitoria de Graduação da USP.
Programa reuniu pesquisadores de diferentes áreas. Foto: Guilherme Ike, tirada durante a Colônia de Férias da EEFUSP Jr.
As intervenções tiveram início em abril de 2021 e se encerraram em dezembro do mesmo ano. Por conta da pandemia, foram feitas online, algumas de forma síncrona e outras assíncrona, seguindo um percurso que passou por cinco etapas:
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Sondagem da dificuldades e expectativas dos alunos;
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Identificação da percepção dos alunos sobre o tema e suas definições;
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Conceituações, histórico e discussões sobre a suposta “ideologia de gênero”;
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Estudos de caso (levantamento de vivências e experiências e análises situacionais);
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Planejamento de intervenção (organização do plano de aula).
Os resultados da coleta de dados apontaram ao mesmo tempo o interesse e a dificuldade apresentada pelos estudantes na compreensão dos conceitos envolvendo a temática de gênero e suas implicações no ambiente escolar, além de uma percepção de que o tema ainda é muito pouco abordado no processo de formação docente. Também se notou uma demanda por propostas práticas para aplicar o que é discutido em aula, com foco na preparação para o trabalho profissional.
A preparação de professores para abordar o gênero pode ser um passo importante para uma educação mais inclusiva. Foto: Juliana Pinheiro Prado / USP Imagens.
Na etapa de estudos de caso, os participantes foram questionados sobre experiências relacionadas a questões de gênero e sexualidade no ambiente escolar, tanto como alunos quanto como professores. Muitos relataram situações em que a quadra era dividida entre meninos e meninas: os meninos geralmente jogavam futebol de um lado, enquanto as meninas jogavam queimada ou vôlei do outro. Outro tema levantado foi a diferença nas roupas, já que os meninos podiam tirar a camiseta ou usar roupas mais frescas, enquanto as meninas não tinham a mesma liberdade.
Levando em conta esses relatos, os participantes foram divididos em grupos para pensar em formas de intervenção no caso de situações como as mencionadas. Um dos grupos discutiu um cenário muito comum nas aulas de Educação Física: o que o professor não organiza a aula e deixa a escolha por conta dos alunos. Esse tipo de organização dificulta a inclusão e intensifica a desigualdade de gênero. A proposta de intervenção foi que o professor deve trazer práticas esportivas e artísticas que promovam a inclusão e não dependam da divisão por gênero, além de intervir em casos de discriminação.
Proposta de intervenção foi trazer práticas que promovam a inclusão. Foto: Guilherme Ike, tirada durante a Colônia de Férias da EEFUSP Jr.
O estudo mostrou que um programa de intervenções como esse pode contribuir significativamente para a formação docente, ampliando a compreensão sobre gênero e proporcionando maior preparo para o profissional de Educação Física desde a universidade.
Impacto na prática direta com alunos em fase escolar
A pesquisa conduzida por Gabriela Canuto dos Reis, por sua vez, teve como foco avaliar um conjunto de intervenções de futsal no contexto da educação física escolar, integrando discussões sobre igualdade de gênero para promover a aprendizagem dos alunos sobre o tema.
O estudo, realizado em uma escola do Programa de Ensino Integral do Estado de São Paulo, envolveu 35 estudantes, com idades entre 10 e 15 anos, sendo 25 no grupo de intervenção e 10 no grupo controle, que não participaram das intervenções. O objetivo foi analisar como a aprendizagem sobre igualdade de gênero no esporte pode impactar os alunos, com foco na desconstrução das exclusões sociais presentes em práticas esportivas como o futsal e o futebol.
Durante nove semanas, os participantes do grupo de intervenção tiveram 18 aulas, com duração de 45 minutos cada, nas quais foram coletados dados por meio de questionários, entrevistas e o instrumento de análise de jogo GPAI – Game Performance Assessment Instrument, para ter uma visão mais clara das ações dos jogadores durante o jogo, focando em aspectos táticos.
As intervenções sobre gênero no contexto esportivo conseguem mudar atitudes, pensamentos e comportamentos dos alunos. Foto: Marcos Santos/USP Imagens.
Dessas 18 aulas, 4 foram destinadas a realização das ações sensibilizadoras sobre igualdade de gênero, e as demais destinadas à realização prática do futsal. Os questionários e entrevistas contavam com perguntas sobre preconceito na prática do esporte, igualdade de gênero, relação com o esporte e outras informações socioculturais. Eles forneceram dados sobre as percepções dos estudantes em relação à igualdade de gênero no esporte e suas experiências e sentimentos.
Após as aulas e a coleta e análise dos dados obtidos por meio dos questionários, entrevistas e GPAI, os resultados apontaram para um entendimento dos estudantes com relação às exclusões sociais no futsal e futebol antes e depois das intervenções, evidenciando um maior reconhecimento da desigualdade de gênero nos esportes estudados. Além disso, observou-se um empoderamento feminino, comprovado pelas entrevistas e análises dos jogos.
Resultados apontaram para um entendimento dos estudantes com relação às exclusões sociais no futsal e futebol. Foto: Lívia Borges, tirada durante a Colônia de Férias da EEFUSP Jr.
No questionário final, uma das perguntas abordou se as reflexões durante as aulas haviam mudado o pensamento ou comportamento dos alunos sobre a igualdade de gênero. Entre os 25 estudantes, apenas 3 afirmaram que não houve mudança, enquanto 3 disseram que não, porque já incluíam as meninas em suas atitudes. Todas as meninas participantes, por outro lado, responderam que sim.
Outra pergunta investigou se essas reflexões causaram mudanças de comportamento ou pensamento fora da sala de aula. Cinco estudantes responderam que não, e um disse que a mudança foi apenas parcial. No entanto, 19 estudantes indicaram que sim, com todas as meninas novamente respondendo positivamente.
Questionário abordou se as reflexões geraram mudanças de comportamento na sala de aula.. Foto: Lívia Borges, tirada durante a Colônia de Férias da EEFUSP Jr.
“Por exemplo, antes eu evitava muito falar sobre coisa que tem relação [com a] mulher e futebol, porque muitas das vezes eu não conhecia muito ou eu conhecia e travava na hora de falar, porque eu me sentia excluída e eu só evitava. Agora, eu acho que eu tenho que falar, eu sei que não vou mudar a opinião dos outros, mas pelo menos eu vou estar tentando né, de alguma forma ajudar a entender o meu lado”, contou uma das estudantes.
Os outros alunos também relataram que passaram a refletir mais sobre a inclusão das mulheres, o maior consumo do futebol feminino e a repensar seus próprios comportamentos no cotidiano.
Incluir discussões de gênero nas aulas de Educação Física é fundamental para criar um ambiente escolar mais justo. Foto: Freepik.
Ambos estudos evidenciam a importância de integrar discussões de gênero na Educação Física e esporte, área na qual os estereótipos de gênero ainda são presentes e podem limitar a participação de meninas e mulheres na prática esportiva. Seja na formação dos professores para lidar com o tema ou na prática direta com os alunos em fase escolar, as intervenções se provaram eficazes na promoção da igualdade de gênero na Educação Física.
O estudo de Gabriela Canuto dos Reis, intitulado “Ensino de futsal e igualdade de gênero no ambiente escolar: proposta de intervenção”, está disponível no banco de teses da USP e pode ser acessado na íntegra clicando aqui.
Se deseja aprofundar seus conhecimentos sobre o tema, aproveite a oportunidade de participar do curso de atualização "Corpo e Gênero na Educação Física e no Esporte: da formação à intervenção". As inscrições estão abertas e o curso será realizado presencialmente na EEFE, sob a coordenação do Prof. Dr. Sergio Roberto Silveira, orientador de ambas dissertações mencionadas. Para mais informações, clique aqui.
Por Guilherme Ike
Estagiário sob supervisão de Paula Bassi