Entre a aventura e a delicadeza: a vela como uma experiência transformadora para mulheres

Estudo da EEFE explora como a vela pode proporcionar empoderamento, liberdade e novas perspectivas para a mulher no esporte. 

A prática da vela tem sido historicamente dominada por homens, assim como vários outros esportes. De acordo com uma pesquisa da World Sailing (2019), 80% das mulheres que participam da modalidade acreditam que o desequilíbrio de gênero é um problema. Mas, novas perspectivas vêm mostrando como a experiência do esporte pode ser poderosa e transformadora para mulheres. 

Montagem de boia em uma das regatas do 72º Campeonato Brasileiro de Snipe em Vitória. Fonte: arquivo pessoal de Maria Altimira Hackerott. 

Pensando nisso e baseada na questão “O que velejar permite que as mulheres sejam?”, a pesquisadora Maria Altimira Hackerott, sob orientação das Prof. Dras. Soraia Chung Saura e Ana Cristina Zimmermann, investigou a navegação pela vivência feminina, analisando a relação entre corpo, natureza e gênero. 

Entrevistando mulheres com diferentes trajetórias na vela, desde atletas profissionais até aquelas que vivem a bordo e considerando sua própria experiência enquanto velejadora, a pesquisadora observou que a experiência de velejar vai muito além do desafio físico. Trata-se de um processo que envolve uma profunda conexão com o mar, o vento e o barco, permitindo a ampliação da existência e a superação de barreiras, tanto em termos pessoais como sociais.

Pesquisa mostrou que velejar vai muito além do desafio físico. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora.

O estudo mostra que a vela possibilita às mulheres se descobrirem capazes de apreciar e realizar atividades que os estereótipos de gênero, além de não incentivarem, ainda impõem barreiras à sua prática. O olhar investigativo desenvolvido pela autora considerou o velejar enquanto experiência estética, promovendo uma discussão sobre o que toca profundamente as praticantes.  

A pesquisadora também ressalta a dimensão poética da vela e como a prática desperta imagens e sensações que transcendem o aspecto técnico e físico da navegação. A conexão entre corpo, vento e água evoca sensações de imensidão, liberdade e complementaridade com a natureza. 

A vela como experiência estética

Os dados foram coletados majoritariamente nos anos de 2019 a 2023, nas águas das regiões de São Paulo, Ilhabela e Ubatuba no estado de São Paulo. A pesquisa parte de uma abordagem fenomenológica para analisar a experiência estética da vela e como ela se relaciona com a dimensão ontológica das velejadoras.

 

Vista do nascer do Sol dentro do veleiro. Imagem retirada do trabalho original. Fonte: arquivo pessoal de Patrícia Larica. 

A pesquisa mostra que a prática da vela não é apenas uma atividade física ou técnica, mas também um espaço de imaginação e criação de significado. De acordo com a autora, esportes praticados na natureza parecem ter um potencial único para proporcionar experiências estéticas e transformadoras. “A sensação de imensidão do mar, a interação com o vento e a adaptação ao ambiente são aspectos essenciais para que as velejadoras se surpreendam com o mundo e com quem podem ser, com quem são. A experiência estética revela um mundo interno”, explica a pesquisadora. 

Combinando o testemunho de várias entrevistadas, Hackerott elaborou um texto para expressar a experiência com todo o significado poético que se manifestou durante as entrevistas, baseada nas falas das próprias participantes. Confira um trecho: 

Me sinto parte do todo. Me sinto parte do mundo. Me sinto uma só com o vento, a água e o barco. Dependendo do tempo, sou calmaria e tempestade. Velejar exige que meus movimentos estejam no ritmo das ondas e do vento. Horas e horas na água foi me formando como alguém que sabe vestir o corpo de barco e entrar em harmonia com o ambiente. 

Veleiro navegando na Costa Verde do Rio de Janeiro. Fonte: arquivo pessoal de Patrícia Larica. 

A vela permite uma experiência estética de imensidão e liberdade, em que as velejadoras se expandem para além de seus corpos físicos. Esse sentimento de integração com o mar e o vento transforma a maneira como elas percebem o mundo ao seu redor:

Eu brinco com o vento e a água, escolho os melhores caminhos deles e os meus. A conversa se torna mais íntima. Quando percebo, estou vestindo um barco, o vento e a água. Meu corpo se expande. Cada ambiente é uma continuação de mim. Meu corpo inteiro é uma continuação do ambiente.

A experiência das mulheres no mar

A pesquisadora também destaca o potencial andrógino da imaginação e como a navegação permite que as mulheres vivenciem polaridades tradicionalmente associadas a gêneros, como a aventura e a delicadeza. As velejadoras descrevem momentos de força e tensão durante tempestades, mas também de calma e contemplação em águas tranquilas, mostrando que essas experiências não são exclusivas de um gênero e podem coexistir. 

“Sou calmaria ou tempestade, a depender do que o mundo é no momento. Enquanto calmaria, sou delicada. Faço parte de um vento suave, há pouca pressão nas velas. Faço parte de uma água tranquila, deslizo o casco lentamente pelo mar manso. Enquanto tempestade, sou aventura. Faço parte de um vento forte. Sou toda rígida, a vela está cheia de pressão. O mastro, meus músculos, o leme, meus pensamentos, somos todos tensos”. 

Anotações e ideias da autora sobre as imagens poéticas. Imagem retirada do trabalho original. 

Apesar dos avanços em direção à igualdade de gênero, o ambiente náutico ainda é marcado por práticas que limitam a participação feminina. Muitas das entrevistadas relataram enfrentar descrença em suas habilidades técnicas, mas que, ao vivenciar a navegação, imersas no fluxo da experiência, sentem como se as barreiras de gênero fossem diluídas. “Enquanto velejam não há espaço e tempo para pensar se os outros julgam que são ou não capazes, só há espaço e tempo para ser”, afirma a autora.  

A pesquisa também aborda a interseccionalidade e destaca como questões de raça e classe social influenciam o acesso à navegação. Uma das entrevistadas compartilhou os desafios adicionais de enfrentar o racismo e a exclusão social no mundo da vela somados aos preconceitos de gênero, mas também a alegria de subverter essas normas e insistir em ocupar esses espaços. 

Ao vivenciar a navegação, velejadoras sentem como se as barreiras de gênero fossem diluídas. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora.

Entre o vento e as ondas, as mulheres velejadoras traçam seus próprios caminhos e navegam além dos limites impostos. Mais do que um esporte, a vela se torna um símbolo de resistência, pertencimento e superação de barreiras. No balanço dos veleiros, elas encontram um modo de existir, em que ser forte e delicada não são opostos, mas parte uma mesma força que as impulsiona. 

O artigo “Between adventure and delicacy: sailing as a powerful experience for women” foi publicado no Journal of the Philosophy of Sports e pode ser acessado aqui

A tese de doutorado que deu origem ao artigo, intitulada “Entre a Aventura e a Delicadeza: um olhar sobre as velejadoras do Brasil”, está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP e pode ser acessado na íntegra clicando aqui

Editoria: 
Texto: 
Guilherme Ike
Estágiario sob Supervisão de Paula Bassi
Seção de Relações Institucionais e Comunicação

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