Festivais de Jogos Tradicionais promovem a atividade física coletiva destacando a cultura, a diversidade e a inclusão.
A infância de muitas pessoas foi marcada por brincadeiras que fazem parte do imaginário social mais amplo, sendo transmitidas de geração em geração. Jogos tradicionais como amarelinha, pega-pega, pião, peteca, pipa, bolinhas de gude, entre outros, fazem parte do patrimônio cultural imaterial promovido e protegido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Uma preservação que contribui com diálogos interculturais e com a saúde global.
Brincadeiras lúdicas trazem mais contato com a natureza, o corpo e o esporte. Foto: Renata Meirelles/Território do Brincar
Uma pesquisa da EEFE, coordenada pelas Professoras Doutoras Ana Cristina Zimmermann e Soraia Chung Saura, investigou experiências latino-americanas com Festivais de Jogos Tradicionais e suas contribuições para a Educação Física e o bem-estar geral. São eventos que celebram a cultura de uma comunidade e incentivam o envolvimento ativo da população.
As análises mostraram que festividades comunitárias que incluem jogos, danças e brincadeiras tradicionais promovem maior integração social, valorização da diversidade, civilidade, diálogo e sustentabilidade. Além disso, incentivam o movimento do corpo e reforçam a importância da cultura e do patrimônio imaterial. De acordo com as pesquisadoras, os jogos da infância transcendem fronteiras e enriquecem as relações interculturais, oferecendo novas formas de perceber a si e ao mundo.
Os Festivais de Jogos Tradicionais em diferentes culturas
Sob uma perspectiva filosófica e sociológica, as pesquisadoras afirmam que os Jogos Tradicionais são uma “linguagem expressiva e cultural da humanidade”, trazendo importantes contribuições para a Educação Física, tanto no contexto escolar quanto fora dele. Os Festivais de Jogos Tradicionais conseguem reunir pessoas para manifestações culturais com foco no “jogar” e “brincar”, criando um ambiente educativo e um acervo cultural coletivo. Esses jogos e brincares falam de uma linguagem comum, sendo independentes das muitas interseccionalidades como gênero, idade, etnia e outras.
Jogos tradicionais unem pessoas de todas as idades e gêneros. Foto: Lívia Borges, tirada durante a Colônia de Férias da EEFUSP Jr.
Destaca-se que não são eventos restritos a uma localidade, mas sim uma união de práticas corporais que dialogam com o imaginário comum, independentemente das nossas origens culturais. Considerando a relevância desses eventos, o estudo procurou refletir sobre como essa experiências podem contribuir para a Educação Física e favorecer mudanças nos currículos educacionais, nas instituições de ensino, nos espaços urbanos, na descolonização do esporte, nas divisões entre pessoas e culturas e até mesmo na esportivização excessiva de diferentes práticas.
As pesquisadoras buscaram diversas referências nacionais e internacionais para realizarem seu próprio Festival de Jogos Tradicionais em São Paulo, incluindo pesquisas de campo em aldeias indígenas, comunidades quilombolas e caiçaras; além de eventos globais e em centros educacionais, SESCs e ONGs. A principal inspiração para o estudo foi a 37ª edição dos “Juegos Recreativos Tradicionales de la Calle” (JRTC), realizado anualmente em Caldas, no departamento de Antioquia, na Colômbia.
Trata-se de um grande evento organizado por diversas instituições de ensino, no qual as escolas se dividem em equipes para realizar vários projetos interdisciplinares, demonstrações e competições envolvendo os jogos tradicionais. EsSe Festival é observado pelo Grupo de Estudos PES, vinculado ao Instituto Universitario de Educación Física y Deporte da Universidade de Antioquia e coordenado pelo professor titular William Moreno Gómez, em convênio com a EEFE.
Palin é um jogo semelhante ao atual hóquei de campo, sendo tradicional dos indígenas Mapuche da América do Sul. É importante valorizar a cultura de povos originários. Foto: Juegos Recreativos Tradicionales de la Calle
A diversidade de culturas incorporadas à pesquisa é essencial para compreender como os jogos tradicionais se manifestam em diferentes comunidades. Por isso, as pesquisadoras relatam que “a integração de referenciais da cultura afro-brasileira e indígena na Educação Física não deve se limitar à inclusão dos jogos enquanto conteúdos, mas como manifestações carregadas de historicidade e associadas a diferentes formas de perceber o mundo”. Para elas, o currículo da Educação Física deve caminhar para uma educação decolonial, trazendo resistência, valorização estética e solidariedade.
Um evento sustentável que une comunidades pela diversão
Em parceria com o Grupo de Estudos PULA, vinculado ao Centro de Estudos Socioculturais do Movimento Humano (CESC - EEFE), e com a escola pública EMEF Desembargador Amorim Lima, as pesquisadoras analisaram os efeitos positivos de Festivais de Jogos Tradicionais realizados entre 2017 e 2019. Com o apoio de uma equipe formada por estudantes de graduação e pesquisadores da EEFE, o Festival foi realizado de maneira segura na rua da instituição. O evento contou com a participação do corpo docente, funcionários e da comunidade local, o que garantiu a organização, a aproximação e a diversão de 800 alunos durante o Festival.
O objetivo era criar um ambiente livre e seguro, afastado dos valores predominantes dos esportes modernos. Por isso, não houve separação entre gênero e idade, limites de espaço e tempo, restrição entre séries escolares e nem competições e prêmios que, certamente, causariam rivalidade, perdas, divisões e provocações. Todos tinham liberdade para circular entre as atividades e formar grupos espontaneamente. Desse modo, foram disponibilizados apenas objetos e brinquedos simples, capazes de estimular a criatividade e a união. As bolas foram propositalmente excluídas por seu grande apelo entre as crianças.
Os Festivais de Jogos Tradicionais promovem a união da comunidade por meio de jogos lúdicos que engajam a atividade física. Foto: arquivo das pesquisadoras, tirada no Festival da EMEF Desembargador Amorim Lima
O Festival se provou um evento altamente benéfico e de fácil execução. As pesquisadoras afirmam que “os Festivais de Jogos Tradicionais na escola não precisam necessariamente acontecer na quadra. Assim como as aulas de Educação Física também não precisam ficar restritas a esse espaço. O movimento acontece em toda parte e momento”. As crianças formam coletivos naturalmente, seja nas ruas, praças, pátios, vielas, terrenos ou escolas. Além disso, não é preciso um grande investimento financeiro para os materiais das brincadeiras, basta se inspirar nas práticas de comunidades tradicionais, que utilizam a matéria-prima disponível em seu entorno. O lazer e as experiências da infância podem acontecer em qualquer lugar e de forma sustentável.
Festivais promovem interações livres e saudáveis
A pesquisa destaca que os Festivais de Jogos Tradicionais são enriquecedores e podem ocorrer até mesmo em espaços urbanos. A contemporaneidade não precisa ser algo negativo, pois as práticas tradicionais se atualizam e continuam vivas na sociedade - piões, por exemplo, se modernizaram em beyblades e fidget spinners. Do mesmo modo, as pesquisadoras ressaltam que a diminuição de brincadeiras lúdicas e o vício em celulares são fenômenos impostos.
A tecnologia tornou-se um serviço voltado para adultos que esperam crianças comportadas, mais caladas e imóveis – características que não condizem com a natureza da infância. “Essa ideia de criança que atrapalha não existe. A criança brinca e soma espiritualmente ao grupo, porque ela tem uma força espiritual, uma soltura de corpo, uma ausência de malícia e de todos os vícios humanos que surgem mais tarde”, completam as pesquisadoras.
Brincadeiras manuais promovem a criatividade, a movimentação e menor uso de tecnologias entre as crianças. Foto: Guilherme Ike, tirada durante a Colônia de Férias da EEFUSP Jr.
Com o oferecimento de um espaço adequado, organização correta e a recorrência do evento, os Festivais influenciam o envolvimento físico de todos, incentivando-os a abandonar as tecnologias em favor da diversão com o corpo. No Festival realizado na EMEF, as pesquisadoras observaram um grande potencial formativo de caráter e cidadania, além do incentivo à prática esportiva e cuidados com a saúde. Elas também destacam que o evento “oferece a oportunidade para repensarmos a organização fragmentada por gênero, idade, tamanho ou outros marcadores vistos nos esportes hegemônicos, bem como na estrutura escolar.”
Os Festivais de Jogos Tradicionais são uma experiência que promove a diversidade e a espontaneidade das relações, criando um ambiente seguro, lúdico e pacífico. Além disso, influenciam a criatividade e valorizam saberes de diferentes culturas ao redor do mundo. Os estudos em Educação Física podem se beneficiar significativamente ao desenvolver espaços educativos públicos que promovam intensa interação, diálogo, sustentabilidade, preservação do patrimônio cultural e foco nas atividades corporais e presenciais por meio dos jogos tradicionais.
O artigo, intitulado “Festivais de jogos tradicionais: ampliando os territórios da educação física”, está disponível no Banco de Periódicos da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) pelo link:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/conexoes/article/view/8675650.
Texto: Lívia Borges
Estagiária sob supervisão de Paula Bassi
Seção de Relações Institucionais e Comunicação