Exercício físico diário não se reflete em qualidade de vida para ciclistas entregadores em São Paulo, diz estudo EEFE

A economia de plataforma tem sido uma grande tendência dos últimos anos em termos de modelos de negócio. Nesse sistema, os serviços são disponibilizados por meio de uma plataforma digital - um aplicativo de celular, por exemplo -, que gerencia as demandas dos clientes e a prestação do serviço. Transportes e entregas são setores que adotaram intensamente esse modelo, sendo que uma boa porção do trabalho é feita por ciclistas entregadores. Superficialmente, esta modalidade transmite a imagem de sustentabilidade e vida ativa,  porém, nem sempre isso se reflete em qualidade de vida para o trabalhador.

Muitas das entregas por aplicativos na cidade de São Paulo são realizadas por ciclistas. Foto feita pelo autor do estudo. 

Frequentemente, passam despercebidas as condições precárias de trabalho e o esforço físico e mental exigido para o exercício das atividades laborais dos entregadores por bicicleta. Em sua tese de doutorado, Eduardo Rumening Souza, formado em ciências sociais e em educação física, buscou analisar a qualidade de vida de quem usa o transporte ativo como instrumento de trabalho. O estudo foi orientado pelo Prof. Dr. Luiz Dantas e defendido em dezembro de 2021 na EEFE-USP. 

Pedalando junto por seis meses

A análise foi feita a partir do acompanhamento de cinco ciclistas entregadores durante parte de suas jornadas diárias. O pesquisador observou os trabalhadores de março a agosto de 2020, pedalando junto com eles durante quatro horas por dia. A partir disso, foi elaborada uma etnografia do grupo. A etnografia, de acordo com o autor do trabalho, consiste em observar a vida cotidiana dos interlocutores, tentando entender a vida social e traduzir determinada cultura urbana para outras pessoas que não são parte daquele universo. Também foram levantados dados quantitativos como poluição atmosférica nos trajetos percorridos e intensidade e volume do esforço físico.

Uma característica apontada pelo estudo foi a gamificação do trabalho, que acontece por meio da atribuição de pontos calculados pelos algoritmos levando em consideração uma série de fatores, como a performance dos ciclistas, condições climáticas, dia da semana e horário das entregas, além da avaliação dos atores imbricados no processo. É dessa forma que os ciclistas são constantemente e intensamente cobrados pelo próprio aplicativo a serem cada vez mais rápidos e eficientes, mesmo que isso resulte em riscos de lesões e acidentes. 

Rendas promocionais motivam os ciclistas a se esforçarem ao máximo, ainda que isso resulte em riscos. Foto feita pelo autor do estudo.

O modelo estimula uma competitividade acentuada, mas o pesquisador ressalta que é nítida a construção de laços de empatia e solidariedade entre os colegas, que se ajudam mutuamente diante dos desafios enfrentados no dia-a-dia. Mesmo assim, a pressão exercida pelas plataformas gera nos ciclistas uma busca frenética pela eficiência e produtividade. Nesse contexto, não se trata apenas da recompensa financeira, mas também é uma prova de habilidade e força entre os colegas. 

Cobrança, sobrecarga e riscos

Ser mais eficiente, no caso das entregas por bike, significa carregar cada vez mais peso de forma mais rápida. A constante sobrecarga das bicicletas - algumas delas modificadas para acomodar ainda mais produtos - e a rotina de trabalho extenuante podem gerar lesões crônicas e dores articulares. Até mesmo a relação com os espaços urbanos entra na equação entre produtividade, deslocamento com sobrecarga e demanda por velocidade. 

 

Bicicleta adaptada para aumentar a capacidade de carga. Foto feita pelo autor do estudo.

É comum observar ciclistas entregadores circulando de forma não convencional por vias de pedestres, por exemplo. Devido ao conhecimento particular do terreno urbano e suas irregularidades, o trajeto calculado matematicamente pelo GPS é substituído por caminhos que exigem menos esforço físico. “A interpretação corpográfica da cidade, mediada pela bicicleta, enseja modos alternativos de perceber e viver o espaço”, comenta o pesquisador. 

Quem vê corre, não vê poluição

A circulação pelos espaços urbanos se apresenta como mais um desafio a ser enfrentado pelos ciclistas. Não apenas pela falta de estrutura para suprir as necessidades básicas, como uso do banheiro ou espaço para se alimentar, mas também pelo intenso contato com a poluição. Segundo os dados levantados por meio de um equipamento acoplado à bicicleta e um monitor cardíaco, os ciclistas chegam a inalar cinco vezes mais poluentes do que uma pessoa em deslocamento sedentário, como o carro ou o ônibus. Como o estudo foi feito em meio ao isolamento social imposto pela pandemia do Covid-19, quando houve menos circulação de veículos nas ruas, é possível que a poluição inalada seja ainda mais intensa. 

 

Efeito das partículas poluentes nas células pulmonares. Fonte: Nature

A poluição pode gerar inúmeros efeitos colaterais deletérios ao organismo relacionados a processos inflamatórios, aumento da pressão arterial, estresse oxidativo, dentre outros. O pesquisador comenta que, sob o ponto de vista estritamente biológico, os benefícios superam os malefícios na saúde considerando deslocamentos ativos e sedentários. Isso porque o exercício físico ativa respostas anti-inflamatórias e torna os organismos menos reativos aos poluentes inalados. 

Melhora nas condições de trabalho exige políticas públicas

Mesmo quando realizado em ambiente poluído, o exercício físico gera benefícios próprios ao organismo ativo. Além disso, a economia de plataforma fornece uma atividade remunerada de maneira rápida e desburocratizada a pessoas que encontram poucas oportunidades no mercado de trabalho tradicional. Porém, essa facilidade não vem sem um custo no formato de trabalho precarizado. Para atender às demandas, segundo o pesquisador, os entregadores reorganizam “a própria vida, colocando necessidades básicas como ritmo circadiano, alimentação, asseio, tudo isso em função do esquema de funcionamento das plataformas”.

Para o autor do estudo, a melhora na qualidade de vida dos ciclistas passa pelo engajamento do governo em elaborar e adotar políticas públicas que tragam condições mais dignas para o exercício das funções. Isso ocorre mediante  mobilização política e organização da classe. Ele cita a manifestação ocorrida em junho de 2020 em São Paulo denominada BrequedosApps, na qual milhares de entregadores suspenderam, provisoriamente, sua rotina laboral para protestar por melhores condições laborais. 

Ciclistas entregadores durante manifestação em 2020. Foto feita pelo autor do estudo.

“A tecnologia mudou quantitativamente e qualitativamente a forma como o trabalho informal é incorporado à lógica de acumulação de capital. Ela consegue extrair os menores fragmentos de tempo da vida do indivíduo, e compor isso na dinâmica capitalista, o que antes não era possível na informalidade. Assim, o que essas empresas estão vendendo é a precarização da vida humana, o que é insustentável a longo prazo e poderá levar a um caos social”, comenta o pesquisador.

A tese, intitulada “Rebocadores urbanos e capitalismo de plataforma: ensaio sobre a entrega por bicicleta em São Paulo”, está disponível no Banco de Teses e Dissertações da USP e pode ser acessada a partir do link: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/39/39136/tde-15032022-173618/pt-br.php.

 
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