O Esporte Moderno, na sua concepção filosófica, apresenta uma relação estreita com a competição e o alto rendimento. Essa ideia floresceu na Revolução Industrial, que trouxe uma organização familiar e laboral mais definida nos centros urbanos, com espaços e tempos delimitados para o esporte e lazer. Hoje em dia, por exemplo, boa parte dos conteúdos esportivos veiculados nas mais diversas plataformas é referente a grandes atletas e grandes feitos. Porém, uma outra filosofia, explorada no trabalho de mestrado de Luciana Itapema, orientada pelo Prof. Dr. Ary José Rocco Jr., propõe uma visão diferente do Esporte e da Cultura Corporal de Movimento
O Esporte para Todos propõe uma visão diferente do Esporte e da Cultura Corporal de Movimento.
O Esporte para Todos, modelo filosófico proposto pelo sociólogo Henning Eichberg em meados dos anos 90, apoia-se na investigação dos fenômenos socioculturais e contradições dos padrões da vida humana. Em vez de analisar o Esporte como fenômeno unitário, propõe o reconhecimento de movimentos esportivos e culturas de movimento, englobando práticas como jogos folclóricos, atividades ao ar livre, ginásticas, danças, dentre outros. No Esporte para Todos, essas práticas são consideradas objetos de pesquisa e instrumentos de avaliação de contextos históricos, sociais e políticos. Nessa perspectiva, todas as pessoas são incluídas, não importando idade, gênero, raça, cor, religião, deficiências ou nível de habilidade.
Aplicação organizacional
Embora esse olhar para o esporte na perspectiva do Esporte para Todos seja adotado por diversas organizações esportivas ao redor do mundo, há poucos estudos acadêmicos na área. E, consequentemente, menos pesquisas ainda sobre como poderia ser um modelo de gestão esportiva adequado para organizações com essa intencionalidade.
O mestrado de Luciana Itapema analisou o processo de gestão dos programas esportivos de duas entidades privadas sem fins lucrativos que atuam baseadas no modelo filosófico. Segundo a pesquisadora, é primordial que haja uma coerência entre o que se intenciona com aquilo que se pratica na gestão. Além disso, uma gestão inspirada no Esporte para Todos deve objetivar a integração social, a segurança, a justiça, o princípio da igualdade, solidariedade e comunidade, valorizar e reconhecer os jogos e brincadeiras tradicionais e outras manifestações da cultura corporal do movimento, juntamente com as modalidades esportivas já conhecidas
A gestão inspirada no Esporte para Todos deve valorizar e reconhecer os jogos e brincadeiras tradicionais.
“O seu conteúdo é mais abrangente do que as modalidades esportivas formatadas sob regras formais, convencionais e internacionais, chanceladas pelo sistema tradicional esportivo anglo-americano, ou de caráter comercial. O ponto de partida são jogos e brincadeiras populares e regionais, o envolvimento comunitário e a não necessidade primordial de uma justificativa utilitária, competitiva, produtiva ou funcionalista para o esporte”, explica a pesquisadora.
Essa perspectiva ampliada pode beneficiar organizações que não se enquadram totalmente no modelo tradicional limitado do Esporte Moderno, cujos praticantes são restritos a grupos com habilidades e características específicas. “Porém, o conceito ainda precisa ser mais difundido e estudado para ser aplicado institucionalmente. Para isso, é importante entender a que se propõe a filosofia do Esporte para Todos e, a partir daí, criar modelos de gestão mais coerentes, unindo a abstração da intencionalidade à concretização, a prática em si”, afirma a mestre pela EEFE-USP.
Resultados da pesquisa
As organizações analisadas pelo trabalho têm atuação relevante no contexto brasileiro, seja pela sua dimensão, tempo de existência ou abrangência de ação no território nacional. Ambas tem ações operacionais no estado de São Paulo e promovem o esporte de participação ou educacional sem caráter prioritário formal ou escolar. O estudo baseou-se em análise documental e entrevistas com gestores.
Ambas as instituições analisadas promovem o esporte de participação ou educacional sem caráter prioritário formal ou escolar.
Nas duas entidades, indicadores do Esporte para Todos foram observados nos programas esportivos. Algumas das características consideradas coerentes ao modelo envolvem ações motivadas por um ideal ou causa social; processo construtivo contínuo e aberto, pautado em premissas e diretrizes de longa duração e com envolvimento de muitos agentes; processo conduzido por gestores líderes do programa, que atuam como mediadores, numa relação democrática de gestão; dentre outros.
A pesquisadora ressalta, porém, que entender se uma organização está alinhada com os preceitos do Esporte para Todos exige a consideração sobre diversos aspectos: “reflexões sobre a educação e sua intencionalidade e sobre as dimensões da educação esportiva técnica, funcional e humanista, correlacionando-as à respectiva coerência com as lógicas do Estado, Civil e Mercado. E, numa esfera macro, com o modelo socioeconômico de desenvolvimento de um país ou de uma região e sobre cultura social e identidade popular. É provocar cada organização a olhar para si mesma”.
Premiação
O estudo, intitulado “O Esporte para Todos e a gestão de programas esportivos em organizações privadas sem fins lucrativos”, foi defendido em 2020 e ficou em segundo lugar no Prêmio Abragesp de Teses, Dissertações e Trabalhos de Conclusão de Curso em Gestão do Esporte. O trabalho está disponível para download gratuitamente no Banco de Teses de Dissertações da USP.
Mais informações também podem ser obtidas no artigo Esporte para Todos: um ensaio sob a ótica de Henning Eichberg, publicado na Revista do Centro de Pesquisa e Formação n.13 - Dossiê Esporte: Um Fenômeno Sociocultural.